Capítulo 19 – O Princípio da Ordem

Daniel subia as escadas que levavam à entrada da aeronave, com certo temor da viagem aérea. Ele olha por cima do ombro e nota Dante subindo logo atrás, despreocupado e distraído. Após entrarem e se localizarem com suas poltronas, ambos se preparam para aguardar a partida. Daniel olha pela janela o tamanho do aeroporto e as pessoas entrando ainda no veículo enquanto Dante já cortejava as aeromoças que passavam pelo corredor auxiliando os perdidos. O jovem, ainda observando o movimento lá fora, indaga algo há muito reservado em sua mente:

- Dante, faz uma semana que eu percebi uma aura demoníaca em você. No início eu tive medo, mas com o tempo, lhe conhecendo melhor, esse medo se tornou curiosidade... Você sabe me dizer como o Círculo Oculto começou?

O Imortal olha para Daniel e faz uma expressão séria. Rapidamente ele investiga os arredores para saber se alguém estava prestando atenção na conversa e então se volta para o jovem respondendo-o:

- Ah... Como vou dizer. Para você conhecer a história do Círculo, vou contar a minha história para você... – Ele faz uma breve pausa olhando novamente ao redor e retoma o diálogo – Eu nasci em uma família pobre de comerciantes na Europa Medieval. Na época, eu tentei aprender o ofício da família, tentei ser uma boa pessoa, mas o mundo da forma que era, que estava sendo dominado por demônios, me fez ser totalmente o contrário. Me lembro que uma vez, em meu vigésimo aniversário, eu encontrei o mapa do esconderijo de toda a riqueza do meu pai e logo eu o roubei fugindo em seguida. Anos depois eu estava afundando em meus próprios pecados, cometi todos eles e não só os fiz como repeti tudo. Conheci uma feiticeira que me ensinou a fazer tratos com demônios e como feri-los. Daí você já viu né, eu fiz muitos tratos e depois ferrei todos eles. Até que os Céus começaram a me procurar...

Novamente Dante olha ao redor. Estava com uma estranha sensação de que algo estava errado, mas como não encontrava nada, ele ignora o fato para continuar a conversa:

- Nesta época eu já tinha uma longa ficha de pecador condenado ao inferno. Todos os demônios que eu encontrava me diziam que o próprio Azazel estava de olho em mim. Azazel é um grande General infernal. Acima dele somente os Lords Infernais e o grande Lúcifer.

A aeronave começa a se mover. Daniel leva um susto, mas tenta disfarçar. Dante olha pela janela e depois para o jovem, prosseguindo:

- Eu fiz de tudo para fugir dos anjos, mas um deles me encontrou. Talvez você nem saiba quem ele é, ou foi. Seu nome é Behael, um Potestade que tinha como missão ceifar minha vida em terra e levar minha alma pecadora para o Inferno. Mas naquela época eu tinha alguns dons dados pelos tratos que eu tinha feito com demônios e consegui fugir de sua ira, contornar o seu jogo e roubar sua foice. Eu não sabia na época, mas para um Anjo da Morte a foice é um objeto de poder que mantém seu corpo físico e ao roubá-lo eu acabei por fazer ele desaparecer. Naquele dia eu senti todo o poder daquela arma passar para mim e percebi que eu havia assumido a posição de Anjo da Morte dele. Porém, todo o coro de Potestades passou a me odiar, mesmo porquê eu era um procurado pelos céus. Não sei ao certo o que foi que parou aqueles anjos quando me encontraram anos depois, mas foi nessa época que eu conheci Raziel.

Daniel olha para Dante pensativo. Se perguntava diversas coisas, mas o mais importante era dúvida do que havia acontecido com Behael. Dante olha por cima do ombro e percebe uma aeromoça trazendo alguns aperitivos e uma lista de bebidas. Ele pára-a e pede um pacote de amendoins, depois ele acena para a carta de bebidas e pede um Dry Martini. Daniel acena como quem não quer nada. Atento à história, ele aguarda ansiosamente pela continuação. Dante continua:

- Então... Nesta época eu conheci Raziel. Eu havia perdido tudo na minha vida, havia assumido uma força que não era de meu conhecimento e ainda havia pecado mais uma vez contra alguém que só quis o meu amor. Eu estava acabado, beirando a loucura e ele surgiu revelando saber tudo o que eu tinha passado em vida. Nesta época eu já estava com meus vinte e tantos anos, quase trinta, e não esperava mais nada nesta vida... Só queria saber como voltar atrás em todo o mal que eu tinha feito. Ele me propôs a Redenção de todos os meus pecados, mas para isso eu deveria fazer o que eu sabia fazer de melhor... Invocar Demônios e fazer tratos com eles. Raziel queria que eu aprendesse o máximo que eu pudesse sobre os Demônios e usasse da Foice da Morte para quebrar todos os tratos. Durante dez anos eu fiz o que ele pediu e percebi que meu corpo não envelhecia mais, também não morria quando ferido gravemente. Percebi que a foice me dava certa imortalidade. Aumentei meu poder, expandi minha Aura Demoníaca e eliminei muitos demônios. Após cinqüenta anos Raziel me apareceu mais uma vez, agora para me propor algo que estava fora dos conhecimentos de Deus. Ele disse que precisava impedir algo, disse que alguns demônios deveriam ser exterminados e que precisava da minha força para isso. Aí me ofertou a criação de um grupo que ele chamou de o Círculo Oculto. Este grupo lutaria contra todo e qualquer demônio que caminhasse pela Terra, fora dos domínios Infernais.

Dante olha por cima do ombro. Uma incômoda sensação tirava sua concentração em suas memórias relembrando os fatos. Não encontrando nada, ele volta-se para Daniel e conclui:

- Nós dois juntos acabamos com alguns demônios, ele me ensinou a destruir completamente o corpo e “obliterar” as almas deles. Esse é o termo que os anjos usam quando se destrói uma alma, fazendo-a sumir completamente da existência.

Daniel pensa por alguns segundos em tudo o que foi dito, então seus olhos se arregalam e ele, trêmulo, murmura:

- Estou sentindo uma Aura Demoníaca no avião.

Dante olha para o local, seus olhos vasculham todo o aposento em busca daquela Aura. Ele se esforça para sentir o que Daniel anunciou, mas nada sente. Duvidando da percepção do companheiro ele diz:

- Não sinto nada... Apesar de algo me incomodar profundamente.

Daniel se concentra olhando para o nada à sua frente. Após pouco tempo ele diz:

- Não está próximo... Mas está no avião, eu tenho certeza. É uma Aura baixa, fraca.

O Imortal se concentra mais uma vez, mas nada encontra. Ele olha para Daniel, ainda duvidando, e fala:

- Deve ser algum maluco ou um assassino, alguns seres humanos que possuem sua tendência alterada por algum motivo mundano podem assumir uma Aura fraca. A maldade em seus corações é tão grande que acaba por concentrar esse poder maligno, demoníaco. Não ignore completamente, já que você sente, procure ficar atento com as movimentações dele durante a viagem. Porém não perca a cabeça por causa de algo tão baixo.

Daniel olha na direção que sente aquela fina faixa de energia e só encontra o final do corredor naquela área em que se encontrava. Ouvindo o que Dante pede, ele ignora parte daquela sensação e passa a prestar atenção na conversa que estavam tendo. Ele declara suas reflexões sobre o que o Imortal disse:

- Voltando ao assunto, você tem séculos de vida pelo que percebi. Deve ter uma grande experiência.

Dante sorri e então percebe a aeromoça trazendo seu Dry Martini. Ele agradece-a e paga a bebida. Logo em seguida vira a taça tomando toda a bebida de uma só vez. O gosto do drinque nunca lhe agradou tanto, mas ele insistia no visual social que esta bebida concedia. Por fim o Imortal retruca:

- Não quando a vida não se tem graça. Como eu disse, aprendi muito quando se trata de demônios, pois quero me redimir. Mas, na verdade, não tenho mais tanta graça em viver. Só caminho dia após dia para atingir essa minha meta. Tenho uma ferida aberta que sangra há séculos e o único amor que poderia curá-la há esta hora está morto.

Dante se silencia. Daniel prefere por não falar mais nada. Acreditava que tinha invadido demasiadamente o íntimo do amigo e por isso preferiu se manter calado. Porém agora ele tinha uma outra visão do companheiro. Então Raziel também deveria ter algum motivo para pedir a Dante para aprender tudo sobre os demônios, talvez Raziel também tivesse alguma dívida com estes seres. E o Círculo estava aqui para cobrá-la. Daniel imagina o que lhe espera, lembra-se de Azazel lhe visitando no hospital e também do mesmo Azazel procurando por Dante enquanto ele ainda não havia roubado a foice da morte. Imagina o poder dele e teme em pensar que poderia entrar em um conflito direto com o General de Lúcifer. Daniel lembra-se de Lúcifer, de sua expansão de poder. Havia muito ainda por aprender e ele tinha certeza disso. O jovem recosta sua cabeça na poltrona e relaxa esperando que a viagem acabe logo. Por fim dá uma ultima conferida naquela Aura maligna e percebe que ela está lá, imóvel. Ele decide descansar e deixa tudo para lá.

Dante pede outra bebida e acaba por se afogar em lembranças ruins. Se não fosse tão rígido com seus próprios sentimentos, deixaria a lágrima contida escorrer por seu rosto.